1/14/2008

Não é mera coincidência

Hoje li um post muito interessante do Inagaki. Ele fez com que eu lembrasse de um tempo bacana de minha aborrescência. Fez com que eu lembrasse papai. O Ina escreveu sobre o filme Houve uma vez um verão (Summer of´42). Que filme. No post abaixo falei que o filme que marcou esta fase de minha vida foi o do Ferris Bueller. Claro que marcou, mas o Verão de 42 eu tinha deixado de lado. Sabe quando você tem alguns arquivos guardados no computador e nem se lembra de abrí-los, mas se você não os encontra, ou porque alguém apagou, ou porque é incapaz de achar, você entra em pânico? Pois é, o Verão de 42 funciona mais ou menos assim comigo. Lembro-me que assisti ao filme pela primeira vez na Sessão de Gala da Globo que passava às sextas-feiras (sem tiração de chinfra com minha idade. Este post é sério, tão entendendo?). Gostei tanto do filme e da música que fiz papai encontrar o disco de Michel Legrand para ouvir aquela pérola toda hora. Que música. Papai encontrou o disco, não aqui no Bananão, obviamente, mas em Nova York. Foi para lá e lembrou de procurar. Ouvi tanto o disco, mas tanto, que não sei como o vinil não furou. Tenho o bolachão até hoje, mas nunca mais ouvi. Não possuo mais "vitrola". Agora ouço CD, MP3 e essas parafernálias todas tecnológicas. Mas não pensem vocês que reclamo. Adoro parafernálias tecnológicas. Pena que sou meio capivara para isso tudo. Só sei que o Inagaki me fez lembrar de outras coisas. Lembrei de papai. Ele era autodidata. Estudou até o que hoje chamam, ensino médio, mas lia muito. Lia tudo o que via pela frente. Tentou fazer com que meus dois irmãos lessem como ele. Não conseguiu. Eles estavam mais interessados em garotas. Como eu era a mais nova, jogou suas esperanças em mim. A partir de meus doze anos, papai comprava livros compulsivamente e me obrigava a ler um por semana. Nossa casa era enorme e no maior dos quartos, papai fez uma biblioteca maravilhosa. Lembro-me como se fosse hoje, quando ele chegou em casa com os olhos brilhando com a obra inteirinha de Nietzsche em italiano comprada num sebo (papai era italiano). No começo, eu me sentia obrigada mesmo a ler, mas depois ficou tão natural, tão gostoso, que não parei até hoje. Papai dizia que devíamos ler coisas boas e coisas ruins para formarmos opiniões e poder mudá-las sempre. Não consegui, por exemplo, ler um livro de Sidney Sheldon inteiro, acho que era O Outro Lado da Meia Noite, de tão ruim que achei. Papai ria. Ele sabia que aquilo era lixo, mas sempre me lembrava que o titio Sidney escreveu os episódios de I dream of Jeannie, que eu adorava. Ele fez com que eu aprendesse ingês bem cedo. Comprou um livro ótimo em inglês de poesias. Tinha Pound, Yeats, Auden, Eliot e muito mais. Pedia para que quando eu me sentisse preparada, lesse para ele, traduzindo todas. Ele não falava e nem entendia inglês (e não fazia questão. Coisas de italiano). Consegui. Lia de duas a três por dia para ele. Ele gostava de todos os poetas e em especial Auden. Um dia, ele leu que Auden era homossexual. Soube que Funeral Blues foi escrito em homenagem ao companheiro do poeta que havia morrido. Meu pai era daqueles italianões machistas que não suportava a idéia de ter por perto um homossexual. Quando fez a "descoberta", ele disse: "Pode ser um finocchio, mas como escreve bem esse homem." Com isso, ele mudou um pouco sua opinião sobre os homossexuais. Passou a tolerar muito mais. Eu me divertia. Ele comprava aquelas coleções da Abril Cultural com clássicos da literatura. Com isso, li Wilde, Dante, Cervantes, Standhal, Dostoiévski, Tolstói, Shaw, Borges e tantos outros. Papai já tinha lido tudo isso.
Ele gostava de música também. Adorava um bom samba. Íamos visitar alguns dos clientes dele e ele colocava a fita cassete no aparelho de som de seu carro (papai teve sei lá quantos Landau zero. De ano em ano, papai trocava o carro, mas não abria mão de dirigi-los. O motorista só dirigia os outros carros. Ele era ciumento com seus automóveis (era assim que ele os chamava)). Ele ouvia muito samba. ele dizia que era samba cadenciado: Paulinho da Viola, Lupcínio Rodrigues, Jamelão, Nelson Gonçalves, Martinho da Vila, João Gilberto. Eu que já tinha um ouvido puramente roqueiro, não era nem um pouco chegada nessas coisas, embora eu gostasse de ouvir a voz de Paulinho da Viola e as letras das músicas dele, porém, não dava o braço a torcer. Decorei um amontoado de sambas, mesmo sem gostar. Papai tentou apresentar-me ao jazz, que ele simplesmente amava. Burramente, não me interessei. Fui me interessar mais agora, quando um grande amigo me convenceu implicitamente de que se tratava de excelente música. Estou lendo até "A Love Supreme" que conta a história do grande álbum de John Coltrane (dica das boas. Aliás, Coltrane tocou com Michel Legrand).
O fato é que sobrou muito pouco de nossa biblioteca. Mudamos de casa por motivo de força maior e em primeiro de julho de 2006, papai morreu. Como ele acreditava muito na tecnologia, um médico disse a ele que seu velho coração só funcionaria direito novamente com uma cirugia com célula-tronco. Ele resolveu fazer. Foi tudo bem durante a cirurgia. Um dia antes de sua morte, passei a tarde inteira com ele no hospital. Ele estava ótimo. Relembramos um amontodado de situações gostosas que vivemos naqueles anos. No dia seguinte o pobre coração de papai resolveu parar, assim, de uma hora para outra, sem pedir licença e sem me dar um único aviso. Foi um grande sofrimento. Após um período, consegui ir até o sótão da casa de meu irmão para tentar encontrar algum livro que sobrou de nossa biblioteca. Para minha surpresa, encontrei um monte deles. Ainda falta verificar os discos. Vou aos poucos, só tateando. Presenteei amigos especiais com obras igualmente especiais. Nos melhores, papai me presenteava o livro com dedicatória e tudo. Dei, por exemplo um Swift para um grande amigo meu. Um Dom Quixote, para outro. Um Standhal para outro. O primeiro romance que li em inglês, Razão e Sensibilidade de Jane Austen, dei a um outro amigo especial. Presenteio aos amigos com estes livros, já que para mim, é doloroso olhar para eles. Sei que com esses amigos, estarão em boas mãos. O velho italiano me faz muita falta. Choro toda vez que penso nele, mas ele foi tão importante para mim, mas tão importante, que nem ligo quando choro a falta dele. As lágrimas correm de forma tranqüila e pacífica.

Esta não é uma obra de fiquição. Faz parte de minha vida real.

7 comentários:

Anônimo disse...

Teu texto é uma obra de fricção, babe. Me fez lembrar de muitas coisas só minhas.Adorei o post. Muito mesmo.

Teu pai fez de vc uma pessoa muito querida, saiba.

Ah, saiba também que 'o outro lado da meia noite' foi o primeiro livro em inglês que li. Hohoho.

=^D

Anônimo disse...

Que história é essa de fricção? rsrsrs. Que bom que gostou, Enio, querido. Papai, sim, era do balacobaco. E ler "De outer saide ofe de midinaite" em ingreis é de lascar. Hehehe
Vou colocá-lo (hummmmm) entre os queridinhos da Marie, posso? Beijos

Anônimo disse...

Eu com meu compadre Goiaba? Um honra, babe.

Anônimo disse...

Agora só falta você ter assistido ao Summer of´42 na mesa sexta-feira que eu, há coisa de uns... Mas quem está contando, né? :-)

Na boa, Marie, filme e música também me acompanharam por um bom tempo.

Já papai não era nada intelectual. Pescador nas horas vagas, fã de Clara Nunes e Originais do Samba (da formação clássica, com Muçum), ele adorava um bom bestseller. De modo que li quase todos os de Sidney Sheldon, Jorge Amado, Agatha Christie, Érico Veríssimo e Harold Hobbins (rá, agora você vomitou!). Ou seja: devo a papai o amor à leitura e o domínio de um texto de fácil deglutição, com o qual já ganhei uns bons trocados - e do qual não consigo me afastar até hoje.

Isto aqui virou um post.
Desculpe. Entusiasmei. Vai ver to me achando em casa, só porque você acatou minha sugestão para a retranca.

Bjs
NG

Anônimo disse...

Ei, Nariz, querida. É sempre uma honra recebê-la por aqui. Tenho certeza que foi na mesma sexta-feira, já que foi a estréia da Sessão de Gala. Quem liga pra idade? ;)
Papai também gostava dos Originais do Muçum (Assassinaram o Camarão, este clássico). Li tudo o que citou e, confesso, gosto de Agatha Christie, por que não?
Para meu deleite e dos poucos leitores (por enquanto, já que estou contratando um personal bloger rsrsrs), seus comentários devem ser um post mesmo. Aqui, querida, você de verdade está em casa. Portanto, pode andar descalça e pisar no sofá da Fábrica de Móveis Brasil (Tá?). Beijos

A. disse...

Puxa.
Resolvi ignorar uma cliente chata que me inferniza por e-mail e vim fuçar seus arquivos. Que bom! Esse post é lindo. Tão lindo que até me doeu um pouco. Um muito. Morar longe da família é agridoce, hoje mais acre do que doce - mesmo estando em casa de mamãe afundada em ócio e mordomia. (Como a gente fica sofrendinho, né? Mulher é foda.)

Anyways, um abraço para seu pai, lá; um beijo para você, aí.

Marie Tourvel disse...

Que bom que fuçou meus arquivos, querida. Tem muita bananice, mas às vezes acerto. Esse é um dos meus posts favoritos. Mulher é phoda, mesmo, com ph e tudo (hehehe). Adorei sua visita e não repare na bagunça. Um grande beijo.